quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

As religiões múltiplas da sociedade cuiabana

ESPECIAL CUIABÁ 300 ANOS

Capital congrega católicos, espíritas e crenças de matrizes africanas em busca da espiritualidade

Fonte: Prefeitura de Cuiabá
A cena era um tanto incomum para pessoas que passavam pela igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, no sábado 24 de junho de 2017. Pessoas de vestidos, calças e camisas brancos, de turbantes e colores característicos da religião umbanda lavavam o pátio da tradicional igreja católica São Benedito. Havia dezenas delas com vassoura e balde de água limpando as escadarias o do templo ao mesmo tempo em que entoavam cantos na língua africana.

Era um evento que carregava matizes político e religioso.  Uns dez anos antes, o mesmo ritual havia sido tentado por líderes umbandistas, mas a resistência interna e a de líderes católicos frustrou a lavagem das escadarias. “Faltou comunicação. A intenção não foi bem articulada e houve resistência interna”, comenta o babalorixá Paulo de Oxumare.

Hoje, centenas de pessoas participam do evento que acontece sempre no meado de cada ano. Além de umbandistas, ele reúne católicos, candomblecistas, espíritas e muçulmanos. “A lavagem só é possível pelo respeito que se tem a outras pessoas”, diz Paulo de Oxumare.

O padre Felisberto Samoel da Cruz, dirigente do Santuário de Nossa Senhora do Bom Despacho, explica que a escolha pela igreja São Benedito não é alheia. “Eles estando frequentando a igreja que foi criada pelos negros, é algo natural se aproximar da cultura. Não vejo problema nisso”.

O padre diz que o santo que deu nome ao templo demonstra o fato histórico sobre sua construção. Os negros escravos impedidos de participar das cerimônias na Basílica do Senhor Bom Jesus, nos primeiros anos de fundação de Cuiabá, ergueram seu próprio templo para celebração religiosa.

“Eles dão nome a seus santos na língua africana, mas têm seu correspondente na Igreja Católica. Não podiam falar manifestar sua crença senão eram mortos, oravam para os santos, mas tendo em sua mente as suas próprias divindades”.

Religiões do povo

O padre Felisberto Samoel diz que os bandeirantes que adentraram a mata em direção ao centro país, a partir do século XVIII, traziam com eles filhos nascidos do cruzamento das raças indígenas, negras e europeias. No comboio de excursão não havia bandeiras representantes da religião, mas o sentimento religioso estava presente nas pessoas.

“Mato Grosso é totalmente distinto de outros Estados do Brasil.  O catolicismo veio do povo. Não foi a igreja, instituição religiosa, que chefiou a entrada dos bandeirantes. Não havia nenhum representante oficial da igreja junto deles. A religiosidade saída do povo, eles eram filhos negros, indígenas e portugueses que estavam no Brasil há algum tempo”.

O sentimento religioso foi percebido e usado pelos líderes bandeirantes para fins econômicos e políticos – a trajetória deles foi motivada pela decadência das capitanias hereditárias no litoral brasileiro; o objetivo inicial era a mão de obra escrava.

Os indígenas encontram por aqui tinham sua própria expressão religiosa, voltada para a natureza. Eles lutaram para mantê-la no processo de invasão de outras culturas.

“Os índios têm forma de comunhão própria, de respeito, de valores, de defender a vida, de oferecer tudo aquilo que eles têm para se partilhado entre todos. Consagram a vida e têm suas maneiras de sepultar os mortos”.

Thiago de Freitas Toledo, da Federação Espírita de MT (Reprodução).
O espiritismo, uma variante do cristianismo, também tem suas raízes no período colonial de Cuiabá. O membro da Federação Espírita de Mato Grosso (FEEMT),Thiago de Freitas Toledo diz que já no século XIX, os escritos de Allan Kardec, teorizador da religião, já eram lidos no original francês por cultivadores da mediunidade.

“O Centro Espírita Cuiabá data de 1911, mas, antes disso o espiritismo já tinha adeptos em Cuiabá, inclusive obras de Allan Kardec eram lidas no original. Isso mostra que Cuiabá era bem avançada na área religiosa do espiritismo”.

“Por aquele tempo já havia a identificação da ligação do rio Cuiabá com as bacias brasileiras que mostram a interconexão entre os espíritos num plano espiritual e os espíritos encarnados. Uma ideia central nos ensinamentos do espiritismo sobre a preservação daquilo que não é nosso”.

A busca pela convivência

“A igreja precisa respeitar a religiosidade popular. Se inserir no contexto da realidade do povo para poder purificar alguma coisa de não correto”, diz o padre Felisberto Samoel da Cruz.

Para ele, o papel da igreja deve representar, primeiramente, a saúde espiritual, com a pregação do amor do respeito ao próximo.  As contendas geradas entre as matizes as matrizes religiosas são produto da experiência puramente humana.

“Existe um problema muito grande de as pessoas quererem julgar como certo aquilo que é dela, parecido com ela. O papel da religião é orientar as pessoas com o princípio do amor, do respeito, de Deus em última instância. O que diverge disso é puramente do homem”.

O problema reflete na avaliação do babalorixá Paulo de Oxumaré ao responder a perguntas sobre o conflito entre a religião candomblé e a católica.

“Esse preconceito existe quando, basicamente, se fala de outras religiões. Nós não podemos reagir por o que as pessoas fizeram no passado. Há católicos que frequentam as reuniões da umbanda e umbandistas que frequentam a igreja católica. Não há problema nisso”.

Fonte: Site do Circuito Mato Grosso