Como o cientista francês Hippolyte Rivail se tornou, aos 53 anos, Allan Kardec,
criador da doutrina espírita e fonte de inspiração do médium brasileiro Chico
Xavier
"A pessoa que estudar a fundo as ciências rirá dos
ignorantes. Não mais crerá em fantasmas ou almas do outro mundo.” Era assim que
o professor Hippolyte Léon Denizard Rivail, membro de nove sociedades
científicas e autor de cerca de 20 livros sobre pedagogia na França do século
XIX, resumia seu ceticismo. Intelectual respeitado, ele vivia em um universo no
qual a ciência estava em ebulição, em meio a discussões sobre eletromagnetismo,
motor a vapor e lâmpada incandescente. Apesar disso, tornou-se o criador da
doutrina espírita tal qual ela está sistematizada hoje, que crê, entre outras
coisas, na reencarnação e na comunicação entre vivos e mortos.
É a história
dessa transformação que está sendo contada no recém-lançado “Kardec, a
Biografia” (ed. Record), do jornalista brasileiro Marcel Souto Maior. “Kardec
precisou ir além da religião para criar uma doutrina inteira em apenas 13 anos”,
diz o autor. De 1857, ano de sua conversão, aos 53 anos, a 1869, quando morreu
de aneurisma cerebral, o francês já havia arrebatado sete milhões de seguidores
no mundo. Um número impressionante para um planeta com então 1,3 bilhão de
habitantes e comunicação precária. Os créditos da velocidade recaem sobre o
próprio. “Ele alcançou isso porque dava tratamento científico aos estudos e
sabia divulgá-los”, afirma Souto Maior.
A aproximação do cientista com o espiritismo começou
em 1855, quando um fenômeno agitava a França: as mesas “girantes”. Em reuniões
fechadas ou salões públicos, participantes ditavam perguntas a mesas que se
moviam, no que era identificado como um sinal de resposta, de mortos ilustres ou
anônimos. Curioso, Rivail passou a frequentá-las em Paris. Procurava, antes, por
cabos, roldanas e fios. “Estamos longe de conhecer todos os agentes ocultos da
natureza”, escreveu. Convencido da boa-fé de alguns grupos, ele passou a crer.
Tempos depois, um espírito contou que o conhecera na época do imperador romano
Júlio César, em 58 a.C. Na época, Rivail chamava-se Allan Kardec – daí a mudança
de nome.
Os primeiros registros do professor sobre o espiritismo viraram “O
Livro dos Espíritos” (1857). Ele assinaria também outras quatro obras básicas, a
fundação da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e a publicação mensal, ao
longo de 12 anos, de uma revista – tornando-se, assim, o grande codificador da
doutrina. Mas Kardec também presidia sessões espíritas e nelas presenciou, por
exemplo, uma jovem de 12 anos receber, de lápis em punho, as palavras de Luís
IX, rei da França morto seis séculos antes. Em outra concorrida reunião, o
missionário e uma plateia embasbacada testemunharam um médium receber – e
executar – uma partitura atribuída a Mozart.
Para confeccionar sua obra, Souto Maior percorreu as
bibliotecas de Paris em busca de material sobre o “papa dos espíritas”. Jornais
de época mostram, por exemplo, a briga entre o criador do espiritismo e a Igreja
Católica. Em 1861, em um episódio conhecido como “Auto de Fé de Barcelona”,
foram queimados 300 livros espíritas na cidade espanhola. Entre eles estavam “O
Livro dos Espíritos” e a tal sonata de Mozart. “Kardec era político”, diz Souto
Maior. “Depois das brigas, ele media as palavras com a Igreja e sabia que isso
traria publicidade.” A perseguição ao espiritismo não poupava o francês, médiuns
admirados por ele ou mesmo seguidores novatos. Em 1865, dois jovens de Nova York
voaram a Paris para mostrar “toques espontâneos de instrumentos musicais e
transporte de objetos no ar.” Durante a exibição, um espectador invadiu o palco
e revelou à plateia o truque: tábuas soltas e uma passagem secreta. A imprensa
transformou o episódio em piada. Kardec se defendeu. Disse que o embuste não
atingia a verdadeira ciência espírita, devota à evolução do ser humano. “Fora da
caridade não há salvação”, escreveu. Insistentemente perseguido, começou a
demonstrar sinais de exaustão e teve um problema cardíaco. “Daí em diante foi
uma contagem regressiva até sua morte”, diz Souto Maior. Em seu túmulo, no
Cemitério Père-Lachaise, em Paris, há hoje mais mensagens em português do que em
francês. Por quê?
A resposta está tanto no espiritismo como no povo
brasileiro. Entre 2000 e 2010, o número de espíritas no País cresceu 65%,
segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O espiritismo
tem 3,8 milhões de fiéis autodeclarados, segundo o IBGE, e 30 milhões de
simpatizantes, segundo a Federação Espírita Brasileira. “Nossa população aceita
muito bem a ideia de vida após a morte”, diz Geraldo Campetti, vice-presidente
da Federação Espírita Brasileira. Há um consenso entre biógrafos céticos,
estudiosos da religião ou espíritas devotos: o kardecismo é praticamente uma
criação brasileira. Três fatores ajudaram a disseminação da doutrina: o
sincretismo brasileiro, que facilita a convivência entre crenças, a proximidade
entre espiritismo e cristianismo e, por último, um certo médium de Uberaba, em
Minas Gerais. “A repercussão alcançada por Chico Xavier é o maior fator da
expansão dos espíritas no País”, diz o sociólogo Reginaldo Prandi, professor da
Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro “Os mortos e os vivos”.
O
espiritismo chegou ao Brasil em 1860 e ganhou relevância com Bezerra de Menezes,
médico e político que, além de expoente da doutrina, traduziu obras de Kardec
para o português. Mas coube a Chico Xavier, falecido em 2002, o fenômeno da
explosão da doutrina a partir da década de 1970. O mineiro ostenta mais de 450
livros publicados. Sua biografia “As Vidas de Chico Xavier”, escrita pelo mesmo
Marcel Souto Maior, vendeu mais de um milhão de exemplares e chegou ao cinema
com direção de Daniel Filho. Fez 3,4 milhões de espectadores.
MESTRE O médium Chico Xavier, morto em 2002, grande difusor do espiritismo no País |
Souto Maior diz que o roteiro cinematográfico da
história de Rivail-Kardec já foi finalizado. “O filme deve ficar pronto no ano
que vem.” Discípulo fiel do kardecismo, Chico Xavier costumava recomendar a
todos as palavras de Kardec. Se o conselho valer para a nova biografia e o
futuro filme, a história de Hippolite Rivail deve manter o fenômeno de
público.
Foto:
Arquivo/ag. O Globo
Fontes: IBGE e Federação Espírita Brasileira
fotos: ROBERTO CASTRO/AG. ISTOÉ
Por: Andres Vera
Fontes: IBGE e Federação Espírita Brasileira
fotos: ROBERTO CASTRO/AG. ISTOÉ
Por: Andres Vera
*Texto extraído do site da Revista Istoé