A revista “Época” e o jornal “A Folha de S. Paulo”, de circulação nacional, e várias associações internacionais elegeram o livro “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, como uma das cem maiores obras da literatura universal do século 20.
Considerado romance genial, o livro já foi estudado dentro e fora do Brasil. A habilidade estilística desse autor, de rara formação linguística e filosófica, é reconhecida internacionalmente.
“Grande Sertão: Veredas” narra a história do cangaço nos sertões que incluíam as vastas regiões de Minas, Bahia, Goiás, com suas venturas e desventuras, justiças e injustiças, crenças e superstições, num período característico da história daquela região brasileira. Lugares ermos praticamente sem lei e sob domínio da força, palco de conflitos cruentos entre as milícias do governo e os cangaceiros.
A leitura dessa obra surpreende, não só pelo tratamento dado às palavras, com seus sons e ritmos peculiares, como pela construção poética das frases que permeiam todo o romance. A sabedoria popular, os ditos, motes do sertanejo rude acabam dando encantamento às falas que parecem compor um outro idioma.
O AMOR QUE TRANSFORMA
A surpresa não fica por aí. Num texto tão longo e denso, o leitor, atento às ideias, vai encontrando aqui e ali, conceitos muito, mas muito próximos do Espiritismo. A linguagem, para quem não está habituado a ler Guimarães Rosa, é estranha, complicada. É preciso ler sem pressa, para ir saboreando o seu conteúdo e compreendendo o texto.
Comentarei a seguir alguns pequenos trechos da obra, como este, onde vemos expresso o conceito de amor ao próximo: Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois – e Deus, junto. Ou seja, como afirma Fénelon no capítulo XI de “O Evangelho segundo o Espiritismo”, há sempre algo bom (centelha do amor em germe), até no pior dos seres. As ações más, em meio às boas, terão no futuro o juízo da consciência, no acerto de contas de cada um consigo mesmo, sob a justiça de Deus.
E este outro, onde a ideia de depuração e aperfeiçoamento do ser está evidente: Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos, é o razoável sofrer. E a alegria do amor – compadre meu Quelemén diz – Família. Se mudarmos a ordem das frases, teremos o pensamento claramente interpretado: é o sofrimento justo e aceito (“razoável sofrer”) e a alegria do amor em família que “gastam”, eliminam aos pouquinhos, as imperfeições de dentro da gente.
A certa altura da narrativa fala-se de um homem chamado Aleixo, frio protagonista de muitas maldades. Um dia, sem motivo, o tal mata um velhinho pedinte por puro prazer. Esse Aleixo tem família, quatro filhos pequenos. Um ano após, os filhos todos adoecem de sarampo “brabo”, que lhes atinge os olhos. Quando saram, todos ficam cegos. O narrador encerra a história triste do Aleixo, desta forma: O Aleixo não perdeu o juízo; mas mudou: ah, demudou completo – agora vive da banda de Deus, suando para ser bom e caridoso em todas suas horas da noite e do dia. Parece até que ficou o feliz, que antes não era. Ele mesmo diz que foi um homem de sorte, porque Deus quis ter pena dele, transformar para lá o rumo de sua alma. O que se vê aqui, no personagem Aleixo, senão a resignação, a compreensão da dor, do revés, trazendo transformação moral?
PROGRESSO E REENCARNAÇÃO
Em relação à história anterior, a Lei do Progresso não estará também aqui?: Que, por certo, noutra vida revirada, os meninos também tinham sido os mais malvados... E, na sequência, poderemos considerar a associação entre dois eventos de encarnações distintas, neste trecho: E o velhinho assassinado? – eu sei que o senhor vai discutir. Pois também. Em ordem que ele tinha um pecado de crime, no corpo, por pagar. Entenda-se aqui, um crime cometido em vida física anterior que acaba sendo vivenciado em papéis invertidos, para despertar o indivíduo que continua com a mesma imperfeição da outra vida. É a pedagogia da vida maior.
O narrador do romance não é o autor propriamente, mas um personagem chamado Riobaldo que, dentre inúmeros casos, cita um em que marido e mulher, primos carnais, tiveram quatro filhos, todos eles disformes: sem braços e pernas. Sobre esse caso, argumenta: Arre, nem posso figurar minha ideia nisso!... um outro doutor, doutor rapaz... discorreu me dizendo que a vida da gente encarna e reencarna, por progresso próprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não haver Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vaivém, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Há aqui abordagem interessante: a encarnação e reencarnação promovem o progresso individual, mas “sem Deus”, portanto pela força do acaso. Já Riobaldo argumenta (como os espíritas argumentariam) que, sem Deus a humanidade não tem rumo, direção, e a vida não tem sentido, lógica nem sabedoria. Não se tem proteção, vivendo-se em constante sobressalto. Sem Deus, a humanidade teria que lutar incessantemente contra a força cega do destino.
Continuando a exposição dos seus “motivos filosóficos” sobre Deus, a vida, a dor, o céu, o inferno, numa belíssima página, o personagem Riobaldo arremata: Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. Dor não dói até em criancinhas e bichos, e nos doidos – não dói sem precisar de se ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo mistério. É curiosa a afirmação do medo, não da morte, mas do nascimento com seus mistérios e incertezas quanto à dor, ao sofrimento que fatalmente aparecerão durante a vida. E realmente, encontramos em várias obras espíritas, depoimentos de Espíritos prontos para reencarnar, demonstrando insegurança e receio quanto às lutas e provas que deverão enfrentar.
O SENTIDO DO VIVER
A dualidade Bem x Mal é apontada no texto: O que não é Deus, é estado do demônio. E o objetivo da vida, bem como a ideia de sua continuidade depois da morte, parece claro nesta passagem: Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo. Que maneira genial de dizer que o homem quer atingir um objetivo com a vida, que é o Céu (a virtude, a felicidade)! Mas um “fim” onde tudo continue, onde a vida prossiga, com a gente vendo, participando, vivendo!
O certo é que há surpresas agradáveis nesse romance de Guimarães Rosa, principalmente para os espíritas atentos.
Até Allan Kardec é citado pelo jagunço Riobaldo, quando este fala do seu “gosto” pelas religiões e cita seu compadre e conselheiro Quelemén, a quem respeita muito: O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemén, doutrina dele, de Cardéque.
Há muito mais que se dizer dessa obra grandiosa, no que se refere à espiritualidade nela entranhada. Mas concluiremos com um trecho em que Riobaldo, um sertanejo sem letras, discursa sobre a vida humana. Para ele, a vida é complexa, com seus momentos de alegria e tristeza, de regalo e necessidade, de tranquilidade e apreensões. Ela dá e tira, conforme a circunstância e exige empenho, luta e disposição. Compreender a vida significa saber o que Deus quer de nós: a capacidade de aceitar a alegria e a dor, os bons e maus momentos como aprendizado. Esse é o trecho: O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza!
Leia mais em: Grande Sertão: Veredas, João Guimarães Rosa, romance, Nova Fronteira, 2006.
*Por CLÁUDIO BUENO DA SILVA para site de O Consolador.