Em dez anos triplicou no Brasil o número de atestados de óbito nos quais a obesidade aparece como causa. Morre-se de quê? De excesso de peso.
Para tornar o cenário mais sombrio, infelizmente um terço das crianças no País está com sobrepeso e obesidade. Ainda é sabido que, em cada cinco crianças obesas, quatro permanecerão assim quando adultas.
O governo, é claro, ganharia muito se fizesse uma campanha persistente/adequada de prevenção e alteração de hábitos alimentares (para os saudáveis). Mas isso não ocorre por enquanto e a ausência desta proposta feliz pode estar orientada por questão política (mercado).
E a indústria alimentícia, por sua vez, é muito competente e interessada tanto na distribuição de alimentos como para deixar o (seu) produto barato e ultrapalatável – sim, pois a mistura de sal, gordura e açúcar é viciante, e o consumidor (criança) fica acorrentado pela língua/paladar.
Basta observar a agonia dos pais nos supermercados, quando os filhos infernizam motivados pelo inculcado desejo de compra de tudo aquilo que eles não sabem mais viver sem (e o desespero é um claro indício da possibilidade dolorosa, para a criança, de uma tortuosa crise de abstinência na hipótese da recusa dos pais e, em termos simples: a falta que faz a ela o biscoito recheado, o salgadinho rico de sódio, os sucos excessivamente adoçados etc.).
Podemos, então, pensar o drama de crianças que chegaram ao sobrepeso e à obesidade e de maneira ansiosamente distraída (não discutimos aqui o caso de obesidade familiar/genética, também preocupante). Muitas delas, e em diversos lugares do Brasil, não sabem diferenciar rabanete de abobrinha. Abominam manga, detestam tomate, melão, uma “chatice o tal do pepino”, elas afirmam.
Muitos diriam: mas a obesidade é multifatorial.
Contudo, alguns "costumes" nocivos estão cada vez mais a fincar espaço nos grandes centros, nas médias e pequenas cidades, vilas e interior deste País e, em consequência, a concorrer para que as crianças engordem, entre eles:
a) transição do alimento natural para o industrializado – e por isso assistimos a restaurantes e praças de alimentação lotados, com TV, na maioria deles;
b) estímulo à compra de lixo plástico que as crianças passam a acumular em suas casas;
c) cantinas escolares que continuam a vender refrigerantes, salgadinhos e comida trash;
d) muitas horas diante da TV, tablet e computador (aqui, o brincar está reduzido ao uso dos “dedões”);
e) falta de estímulo para brincar, ou seja, brincar como direito inegociável da infância – logo, brincar usando o corpo (mover-se!), brincar com o amigo, na grama, experimentando andar, correr, pular, cantar, girar, suar de verdade.
No trabalho terapêutico, quando discuto com os pais e/ou cuidador a respeito de hábitos importantes para o primeiro setênio, muitos comentam sobre os diversos perigos que o filho hoje está sujeito.
Entretanto, por descuido ou ausência de um pensar crítico, muitos pais (e cuidadores) ignoram que deixar uma criança sozinha na frente da TV é quase sempre (muito) arriscado e nocivo, pois implica deixá-la à mercê de uma comunicação mercadológica sedutora e dirigida a ela para estimular alimentos engordativos (comida lixo) e venda de produtos infantis (desnecessários!), auxiliando no processo do lastimável “roubo da infância”, sim, pois a criança hoje vale “lucros & negócios rentáveis”...
A favor do bem-estar dos menores, a Prefeitura de S. Paulo, por exemplo, ciente do alastramento da epidemia da obesidade infantil na cidade, está lançando um prêmio chamado Educação além do Prato (primeiro semestre/2014), que deve premiar escolas com o trabalho mais interessante junto às merendeiras, o que quer dizer receitas mais saudáveis.
Quem questiona que a infância seja magia, encantamento? Mas quem se atreveria a duvidar da cota dramática que o prelúdio da vida carrega consigo? Assim, se a infância tem sua faceta de inocência e deslumbramento, ela também sugere que toda criança, ao menos na fase escolar, seja chamada a enfrentar o desafio de ser aceita/querida, segundo os iniciais experimentos da sociabilidade vividos longe da segurança da casa, dos cuidadores.
O excesso de peso, consequentemente, apenas acrescentaria um obstáculo (= sofrimento) a mais para ela, a criança, no contexto de quem ensaia os primeiros passos do “estar fora” da segura rotina doméstica.
E, no futuro, mesmo que a criança se torne uma "adulta magra", talvez ela nunca se recupere dessa infância – na qual ela foi invisível ou hostilizada (maltratada).
*Para saber mais, assista ao documentário Muito Além do Peso, da cineasta Estela Renner/Equipe da Maria Farinha Filmes.
*Texto por EUGÊNIA PICKINA em O Consolador.