segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Pequena nota sobre o direito a viver

Por: Eros Roberto Grau
Postado na revista Reformador, edição de setembro de 2011.

Inventei uma história para celebrar a Vida. Ana, filha de família muito rica, apaixona-se por um homem sem bens materiais, Antonio. Casa-se com separação de bens. Ana engravida de um anencéfalo e o casal decide tê-lo. Ana morre de parto, o filho sobrevive alguns minutos, herda a fortuna de Ana. Antonio herda todos os bens do filho que sobreviveu alguns minutos além do tempo de vida de Ana. Nenhuma palavra será suficiente para negar a existência jurídica do filho que só foi por alguns instantes além de Ana.

                                                                                                                                                   Foto by: Aka X
A história que inventei é válida no contexto do meu discurso jurídico. Não sou pároco, não tenho afirmação de espiritualidade a nestas linhas postular. Aqui anoto apenas o que me cabe como artesão da compreensão das leis. Palavras bem arranjadas não bastam para ocultar, em quantos fazem praça do aborto de anencéfalos, inexorável desprezo pela vida de quem poderia escapar com resquícios de existência e produzindo consequências jurídicas marcantes do ventre que o abrigou.

Matar ou deixar morrer o pequeno ser que foi parido não é diferente da interrupção da sua gestação.Mata-se durante a gestação, atualmente, com recursos tecnológicos aprimorados, bisturis eletrônicos dos quais os fetos procuram desesperadamente escapar no interior de úteros que os recusam.Mais “digna” seria a crueldade da sua execução imediatamente após o parto,mesmo porque deixaria de existir risco para as mães. Um breve homicídio e tudo acabado.

Vou contudo diretamente ao direito, nosso direito positivo. No Brasil o nascituro não apenas é protegido pela ordem jurídica, sua dignidade humana preexistindo ao fato do nascimento, mas é também titular de direitos adquiridos. Transcrevo a lei, artigo 2o do Código Civil:

A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

No intervalo entre a concepção e o nascimento dizia Pontes de Miranda “os direitos, que se constituíram, têm sujeito, apenas não se sabe qual seja”. Não há, pois, espaço para distinções, como assinalou o ministro aposentado do STF, José Néri da Silveira, em parecer sobre o tema:

Em nosso ordenamento jurídico, não se concebe distinção também entre seres humanos em desenvolvimento na fase intrauterina, ainda que se comprovem anomalias ou malformações do feto; todos enquanto se desenvolvem no útero materno são protegidos, em sua vida e dignidade humana, pela Constituição e leis.

Trata-se de seres humanos que podem receber doações [art. 542 do Código Civil], figurar em disposições testamentárias [art.1.799 do Código Civil] e mesmo ser adotados [art. 1.621 do Código Civil]. É inconcebível, como afirmou Teixeira de Freitas ainda no século XIX, um de nossos mais renomados civilistas, que haja ente com suscetibilidade de adquirir direitos sem que haja pessoa. E, digo eu mesmo agora, nele inspirado, que se a doação feita ao nascituro valerá desde que aceita pelo seu representante legal tal como afirma o artigo 542 do Código Civil – é forçoso concluir que os nascituros já existem e são pessoas, pois “o nada não se representa”.

Queiram ou não os que fazem praça do aborto de anencéfalos, o fato é que a frustração da sua existência fora do útero materno, por ato do homem, é inadmissível [mais do que inadmissível, criminosa] no quadro do direito positivo brasileiro. É certo que, salvo os casos em que há, comprovadamente, morte intrauterina, o feto é um ser vivo.

Tanto é assim que nenhum, entre a hierarquia dos juízes de nossa terra, nenhum deles em tese negaria aplicação do disposto no artigo 123 do Código Penal,1 que tipifica o crime de infanticídio, à mulher que matasse, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho anencéfalo, durante o parto ou logo após, sujeitando a a pena de detenção, de dois a seis anos. Note-se bem que ao texto do tipo penal acrescentei unicamente o vocábulo anencéfalo!

Ora, se o filho anencéfalo morto pela mãe sob a influência do estado puerperal é ser vivo, por que não o seria o feto anencéfalo que repito pode receber doações, figurar em disposições testamentárias e mesmo ser adotado?

Que lógica é esta que toma como ser, que considera ser alguém – e não res – o anencéfalo vítima de infanticídio, mas atribuiao feto que lhe corresponde o caráter de coisa ou algo assim?

De mais a mais, a certeza do diagnóstico médico da anencefalia não é absoluta, de modo que a prevenção do erro, mesmo culposo, não será sempre possível. O que dizer, então, do erro doloso?


A quantas não chegaria, então, em seu dinamismo – se admitido o aborto – o “moinho satânico” de que falava Karl Polanyi?2 A mim causa espanto a ideia de que se esteja a postular abortos, e com tanto de ênfase, sem interesse econômico determinado. O que me permite cogitar da eventualidade de, embora se aludindo à defesa de apregoados direitos da mulher, estar-se a pretender a migração, da prática do aborto, do universo da ilicitude penal, para o campo da exploração da atividade econômica. Em termos diretos e incisivos, para o mercado. Escrevi esta pequena nota para gritar, tão alto quanto possa, o direito de viver.


1“Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena – detenção de dois a seis anos.”
2A grande transformação: as origens da nossa época. Tradução portuguesa de Fanny Wrobel. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000.