quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Travestilidade e transexualidade: uma reflexão espírita

Embora tenha a missão espiritual de ser o coração do mundo e a pátria do evangelho, o Brasil parece ainda ter muito a avançar em relação ao respeito e a valorização das diferenças. 

O tratamento dado pela sociedade brasileira a travestis e transexuais confirma isso: de acordo com a organização não governamental Transgender Europe, o Brasil é líder mundial em assassinatos de pessoas transexuais – ou apenas trans – e travestis. Ao mesmo tempo, conforme o site adulto Redtube, o Brasil lidera o número de acessos online a conteúdo pornográfico trans e travesti. Ou seja, se por um lado, nossa sociedade exercita diariamente o ódio contra pessoas trans e travestis, praticando crimes de ódio, por outro, busca realizar suas fantasias sexuais indo ao encontro desta mesma população. 

Entretanto, o que é uma pessoa travesti ou transexual? E como a Doutrina Espírita pode nos ajudar a amar e respeitar as diferenças de gênero e sexualidade?

Em nossa cultura, quando uma mulher está grávida, ela realiza uma série de exames médicos, entre eles a ultrassonografia, com o objetivo de saber o sexo do bebê. O resultado da ultrassom contribui decisivamente sobre como aquele ser, ainda em desenvolvimento no útero da mãe, será recebido pela família e pela sociedade, ao nascer: nome, vestuário, brincadeiras, enfim, toda a trajetória educacional é determinada, a partir de um procedimento médico. A maioria dos indivíduos se encaixa nesses padrões preestabelecidos pela cultura e os reproduzem no cotidiano, especialmente quando decidem constituir uma família. Nesses termos, os modelos culturais seguem uma cartografia quase única: atrelar o sexo de nascimento ao gênero determinado, em uma lógica pênis-homem, vagina-mulher.

Entretanto, algumas pessoas não se sentem contempladas com esses rumos. Elas podem nascer com um pênis, mas, sentir-se identificadas com o gênero oposto. Demonstrando a possibilidade de existência de mulheres com pênis e homens com vagina, estas pessoas transcendem às normas de gênero, algo que pode suscitar grande estranhamento e profunda discussão. Daí o termo transgênero se tornar adequado para descrever sua experiência. Esse termo amplifica as vivências de gênero para além dos conceitos de mulher e homem. Nesse ínterim, travesti e transexual são formulações que se abrigam em uma noção maior, expressa pelo vocábulo transgênero, concepção indicadora da transcendência das diretrizes ortodoxas de gênero. Na verdade, as limitações linguísticas ficam claras quando discutimos a temática das transgeneridades. Ainda há muito que se caminhar pelas palavras para que estas descrevam com exatidão o sentimento de pessoas que não veem a si mesmas representadas nas normas de gênero socialmente aceitas pela civilização.

A grosso modo, as2 travestis são pessoas que vivem a feminilidade, sem necessariamente se identificar como mulheres. Para isso, utilizam hormônios e comumente não desejam a redesignação sexual. Na verdade, travesti é um termo que se refere a um terceiro gênero ou mesmo a gênero nenhum. Por outro lado, pessoas transexuais se identificam com o gênero em oposição àquele que lhes é imposto quando do seu nascimento. Mais que isso: desejam viver a experiência desse gênero, o qual lhes é socialmente negado. Recorrem a utilização de hormônios e, em alguns casos, realizam a cirurgia de redesignação sexual. Deixamos claro que não se pretende aqui estabelecer diferenças rígidas sobre as definições de travesti e transexual. Na verdade, essa breve explanação se destina apenas ao norteamento da pessoa do leitor, que poderá, a posteriori, se aprofundar em textos científicos voltados a discutir os significados destas acepções. Longe de querer estabelecer rígidas definições sobre a população trans e travesti, o que se pretende aqui é nos familiarizar sobre o tema.

Infelizmente, pessoas trans e travestis têm sido alvo de ódio exponencial. Mesmo com a equiparação da LGBTfobia ao crime de racismo, realizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no último dia 13, oportunidades no mercado de trabalho e acesso à educação e saúde são negados a essa população. Direitos espirituais também são recusados: a maioria das religiões que se denominam cristãs rejeita pessoas trans e travestis, demonizando sua identidade de gênero. Esquecem-se das palavras do Mestre Jesus, conforme expressas em João 13:34: “Dou-vos um mandamento novo; que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros.3”

Em O Livro dos Espíritos, na questão 200, Alan Kardec indagou com relação a se os espíritos têm sexo. A resposta dos Espíritos Superiores é útil para compreender o que está envolvido na existência humana, principalmente na essência de pessoas trans e travestis: “Não como o entendeis, pois que os sexos dependem da organização. Há entre eles amor e simpatia, mas baseados na concordância dos sentimentos.” Uma palavra chama à atenção nessa resposta: organização. Seu significado aponta para o criterioso ordenamento realizado visando a encarnação. Com efeito, a literatura espírita nos mostra o ponderado planejamento que ocorre na vida espiritual, quando se determina ao espírito seu retorno para o mundo físico. Não apenas o sexo, também o círculo familiar e social, a profissão e a natureza das experiências que o espírito viverá são delineados, visando sua aprendizagem e evolução. Nesta perspectiva, a pergunta subsequente de Kardec – “em nova existência, pode o Espírito que animou o corpo de um homem animar o de uma mulher e vice-versa?” – é respondida, deixando-se antever o principal objetivo da reencarnação: “decerto: são os mesmos os Espíritos que animam os homens e as mulheres.”

Desta forma, a Doutrina Espírita nos ensina que travestis e transexuais, longe de serem “demônios”, são, deveras, pessoas com identidades de gênero viáveis para a aprendizagem e a maturação do ser espiritual que temporariamente se encontra em uma vestimenta física. 

1 Sexólogo. Psicanalista em formação. Graduando em Psicologia. Professor de Língua Inglesa. E-mail: armandopsicologia@yahoo.com.br

2 A despeito de como se veem, as travestis desejam ser tratadas sempre no feminino.

3 A Bíblia de Jerusalém.

Artigo de  Armando Januário dos Santos para o site da Rádio Boa Nova