A constitucionalidade da prática do ensino religioso em escolas públicas será analisada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em breve. Fora dos tribunais, partidários defendem pontos de vistas opostos enquanto aguardam pela decisão da Justiça. De um lado, estão os que vêem na disciplina uma porta para ensinamentos sobre respeito a amor ao próximo. De outro, aqueles que enxergam a matéria como uma oportunidade para imposição de valores apenas de determinados grupos.
Para Roseli Fischmann, por exemplo, "as escolas públicas devem servir a todo cidadão e contribuir para formar um princípio de cidadania que não beneficie nenhum grupo em particular". Professora da pós-graduação em Educação da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do programa de pós-graduação em Educação da Universidade Metodista de São Paulo, ela questiona a constitucionalidade do ensino religioso, o que considera "uma prática muito grave".
Na outra ponta da corda está o deputado federal Pastor Marco Feliciano (PSC-SP), autor de projeto de lei que propõe a matéria como obrigatória, mas que prevê a preservação do caráter facultativo da matrícula pelo aluno. A proposta está tramitando na Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados e obteve voto favorável do relator, o deputado Pedro Uczai (PT-SC).
"Embora nosso País seja laico, quer dizer, não tenha uma religião oficial, a constituição foi promulgada em nome de Deus. Ou seja, o País não tem uma religião oficial, mas não é um País ateu. Acredita-se em uma força superior cujo nome é Deus. Então, é possível darmos a nossos filhos pelo menos o pontapé inicial para que a alma deles se desenvolva com os grandes ensinamentos: respeitar pai e mãe, não cobiçar a mulher do próximo, não roubar, não matar", defende Feliciano.
Feliciano considera, contudo, que seu projeto não incentiva a doutrinação. Para ele, trabalhar com a conversão dentro de uma escola seria inconstitucional. Porém, o pastor indica a importância de transmitir ensinamentos como a fé e a existência de um criador. "Se o ensino religioso continuar facultativo, vai seguir insosso e insípido como é hoje. Existe preconceito dos professores e dos alunos", argumenta. O impacto da oferta do ensino nas escolas públicas também poderia ser detectado na redução da violência, prevê o deputado.
O caráter facultativo que está previsto na Constituição, na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação e, também, no acordo entre o governo brasileiro e a Santa Sé - legislações que regulamentam o ensino religioso no País - é questionado pela professora Roseli, principalmente porque a disciplina compõe o currículo do ensino fundamental, que agrega crianças entre 6 e 14 anos.
"Elas são vulneráveis, nem têm como se defender ou como debater seu ponto de vista", salienta. No estado de São Paulo, por exemplo, as aulas de ensino religioso do 1º ao 5º ano do ensino fundamental nas escolas públicas são ministradas de forma transversal, ou seja, o conteúdo é distribuído nas demais disciplinas. Esse método impede que as famílias façam valer o direito de quererem ou não que os seus filhos se matriculem na disciplina. "O professor não vai falar 'agora é religião, quem não quer ouvir saia'. Mesmo que diga, os alunos podem sofrer discriminação dos colegas, até algum tipo de cobrança", opina a professora.
Oração antes da aula
No Colégio Estadual Santa Cândida, em Curitiba, no Paraná, o ensino religioso faz parte da grade de disciplinas para os alunos do 6º e do 7º ano do ensino fundamental. A secretária-geral e pedagoga da escola, irmã Regina Mika, garante que a escola não privilegia uma única religião, mas procura oferecer conhecimento sobre diversos tipos de crença. Segundo ela, apesar de ser uma disciplina facultativa, todos os alunos participam, sem qualquer registro de reclamação dos pais. A pedagoga conta que, antes do início de cada turno de aula, é feita uma oração "pedindo a benção de Deus para o dia de trabalho", que é transmitida a todas as turmas por meio da rádio do colégio. "Mas é mais como uma mensagem", ressalva.
Existem escolas que defendem a existência de ensino religioso, mas oferecido como alternativa à transmissão de valores éticos, ou ainda trabalhando a história das religiões em sala de aula. É o que ocorre em algumas escolas particulares, como o Colégio ICJ, em Belo Horizonte (MG). No currículo, é oferecida a disciplina de Formação Humana. O ensino é "independente de qualquer religião", explica a professora Durce Alves, que cita sexualidade, atualidades e voluntariado como alguns dos temas desenvolvidos em aula.
A professora Roseli Fischmann encara a opção com ressalvas. Para ela, o ensino da história também apresenta diferenças, e seria necessário avaliar se o conteúdo está sendo transmitido de forma adequada. "É muito fácil que o estudo da história das religiões se transforme em uma doutrinação e numa comparação imprópria", justifica. O ensino inter-religioso pode gerar conflitos entre o que é trabalhado no ambiente escolar e o que os pais pretendem transmitir ao filho sobre religiosidade. "Mesmo que a escola faça uma escolha por interconfessionalidade, uma composição dessas religiões, quem garante que isso é do interesse da fé dos pais? Quem garante que isso não vai gerar discriminação?", indaga.
O papel do professor
A crença do professor é outra questão levantada pela professora Roseli Fischmann. Afinal, falar sobre diversas religiões e propor atividades nesse sentido em sala de aula pode violar o direito do educador de ter sua própria fé, entende Roseli. Ela reforça que a crença pertence ao foro íntimo, à consciência de cada um. "Ninguém pode ser obrigado a falar alguma coisa diferente daquilo que crê", diz.
Por outro lado, essa fé também poderia condicionar a visão e o discurso do professor que se propõe a conduzir uma aula de ensino religioso. Para o deputado, o tema seria solucionado com a capacitação de pessoal. Em um dos pareceres da Comissão de Educação e Justiça da Câmara dos Deputados, o relator Pedro Uczai inseriu no PL 309/11 um parágrafo que prevê a criação, pelo Ministério da Educação (MEC), de diretrizes curriculares nacionais para o curso de Licenciatura Plena em Ensino Religioso, único que estaria credenciado para habilitar professores dessa disciplina, desconsiderando Teologia, Filosofia e outras áreas de conhecimento das humanas.
Para a professora Roseli Fischmann, a crença religiosa não é incompatível com uma educação autônoma em relação a valores e ética. Mas ela ressalta: "Não é dizer 'não faz isso porque Deus não gosta'. A criança deve ser educada para ter consciência e ser responsável por seus atos".
O tema deve ser analisado pelo STF a partir de uma ação movida por cinco organizações educacionais e de direitos humanos em março deste ano, que exige que seja assegurado o ensino religioso não confessional (sem vinculação com igreja ou religião específica). Um dos pontos contestados é a classificação do ensino como "parte integrante da formação básica do cidadão" (art. 33 da Lei de Diretrizes Básicas).
*Notícia extraída do site Terra.